sexta-feira, 25 de abril de 2008


A ÉTICA DE SPINOZA:
DA SUBSTÂNCIA A TEORIA DA
LIBERDADE


Marcos Roberto Damásio da Silva[1]


“Tenho-me esforçado por não rir das ações humanas, por não deplorá-las nem odiá-las, mas por compreendê-las.”
Baruch de Espinosa


RESUMO:

O presente artigo intenta apresentar de forma clara e objetiva a ética de Espinosa e mostrar a passagem “da substância à teoria da liberdade” neste autor tão fecundo e de extrema importância para o pensamento filosófico moderno. Centralizar-se-á em analisar conceitos como; “substância”, “Deus” e “liberdade”. Propõe-se em dá o devido crédito a originalidade de Espinosa que de maneira brilhante inicia sua concepção ética partindo de um plano ontológico nunca abordado, e de um profundo labor filosófico. O texto também é resultado de uma exigência à cadeira de Ética ministrada pela Professora Mestra em filosofia Regiane Lorenzetti Collares, na Universidade Federal do Ceará, Campus Cariri, 2007.2.

Palavras-chave: Substancia, Deus, Liberdade, Natureza, Ética.


RESUMÉ:

Le présent article prétend presente de forme clair et objetive l’éthique de Espinosa et montre le passage “de la substance à la théorie de la liberté” de cet auteur tant fécond et d’extrème importance pour la pensée philosophique moderne. Il se centralisera à analiser les concepts comme “substance”, “Dieu” et “liberté”. Il se propose de donner du crédit à l'originalité de Espinosa qui de Manière brillante initie sa conception éthique à parir d’une plan ontologique jamais aborder, et d’un profond travail philosophique. Le texte est aussi le résultat d’une exigence en matière d’éthique de la professeur en philosophie Regiane Lorenzetti Collares à Universidade Federal do Ceará, Campus Cariri, 2007.2.

Mots-clé: Substance, Dieu, liberté, Nature, Éthique.

1. INTRODUÇÃO

Na Idade Moderna a sociedade européia viveu uma época de profundas transformações. É também um período que se mostra ainda em partes ligada à Idade Média. Mas há, sobretudo, um profundo desejo de mudanças; umas extremamente radicais, outras apenas para assegurar uma nova classe social que emergia das ruínas de uma aristocracia decadente. A filosofia nesse período não escapou a tantas mudanças, e é, ela mesma, também agente e foco de tais revoluções. Tanto os questionamentos dessa época, e as legitimações assim também como as modificações fortalecem os pensadores desse período, transformando-os em verdadeiros expoentes de idéias que tiveram grande contribuição para uma época que legou à posteridade uma verdadeira marca no pensamento filosófico. Entre gigantes da filosofia, destaca-se o filósofo holandês Baruch de Spinoza.
Baruch de Spinoza nasceu em uma família tradicionalmente judia, no dia 24 de novembro de 1632, na cidade de Amsterdã, Holanda, (no mesmo ano em que nasceu o filósofo inglês John Locke-1632-1704) vindo a falecer com 44 anos em Haia em 1677, onde viveu por sete anos, vindo a contrair uma tuberculose. De família oriunda de Espanha, mudou-se para Portugal e daí para a Holanda, por causa das perseguições dirigidas pela “Santa inquisição”. Seu nome hebreu era Baruch
[2], que significa abençoado. Em suas obras publicadas em Latim assinava Benedictus Spinoza. Spinoza foi educado na comunidade hebraica de Amsterdã e cedo recebeu os ensinamentos do Talmude, era um notável estudante que passava horas e horas na biblioteca da Sinagoga. O forte desejo pelos estudos o levou a aprender latim, com o mestre holandês, Van den Ende, de forma a poder ler os filósofos cristãos da Idade Média. Foi através do conhecimento do latim que Spinoza ficou apto para adentrar as leituras dos clássicos, principalmente Platão, Aristóteles, Demócrito, Epicuro e Lucrécio.
Em 1656 foi excomungado pela comunidade israelita e expulso da sinagoga de Amsterdã, acusado de “heresias praticadas e ensinadas”. Mas antes da excomunhão, conta-nos Will Durant, em sua História da Filosofia, que lhe foi oferecida uma anuidade correspondente a 500 dólares em troca de manter-se, pelo menos na aparência, leal à sinagoga e à velha fé, escreve Durant: “Espinosa recusou a oferta - e a 27 de Julho de 1656 foi solenemente excomungado de acordo com o rito hebreu”
[3] Mesmo não sendo um judeu por convicção religiosa, a excomunhão é uma marco em sua vida. Após aquele momento Spinoza nunca mais seria o mesmo.
Após a excomunhão, Spinoza passou a viver meio que isolado, seu pai que a muito não via com bons olhos seus estudos de filosofia, o abandonou, assim também como sua irmã, que por pouco não o prejudicou com a separação da herança da família. Foi nesse período de relativo isolamento que Spinoza manteve contato com grandes intelectuais de sua época, foi nessa época também que sua fama de grande filósofo começou a se espalhar pela Europa. Filósofo notável e de grande estima, em nome de sua liberdade recusou o convite de lecionar filosofia na Universidade alemã de Heidelberg, considerava a liberdade mais importante que as limitações impostas aos professores universitários. Suas principais obras foram: Ética Exposta ao Modo Geométrico; Tratado Teológico-Político; Tratado da Reforma do Entendimento; e Epistolário. A sua obra Ética é ainda hoje considerado uma obra-prima da filosofia.

2. A SUBSTÂNCIA

É da noção de substância que Spinoza conjuga sua teoria da liberdade. Mas antes de qualquer aceno sobre tal teoria, cabe aqui uma breve conceituação do termo substância. Por substância Spinoza entende a realidade, a essência imutável e eterna, é a ordem das leis e das relações invariáveis. É importante afirmar que sua ética foi escrita em latim e que sua terminologia é extraída da filosofia escolástica que estudara de forma afinca com seu mestre holandês Van den Ende. Spinoza identifica a substância como sendo o mesmo que “ordem eterna” para os escolásticos. Mas substância não é a matéria constituída de qualquer coisa, como muitos imaginam, mas a isso, Spinoza chama de modo (modus), ou seja, a ordem temporal das coisas que perecem. Em outras palavras, a manifestação da substância, ou seja, os fenômenos do cotidiano. A substância é a natureza ativa, ou até mesmo Deus. Já o modo é a natureza passiva, a matéria ou o mundo.
[4]
São possíveis alguns diálogos entre a filosofia de Espinosa e outros filósofos. Enquanto em Descartes, Spinoza encontra sua antítese, é em Maquiavel que ele encontra de certa forma, uma similaridade de pensamento ético. Em Descartes há um dualismo entre extensão e pensamento. Para ele tanto extensão como pensamento, constituem a substância finita, e uma infinita que é causa sui,


“Em Descartes existem, então, três substâncias e, na verdade, duas finitas, criadas, a corporal (extensa) e a pensante, e uma substância infinita, incriada e independente, isto é, Deus”[5].


Já Spinoza rejeita essa concepção dualista e introduz um monismo onde ele une extensão e pensamento numa única substância, Deus. No fundo a ética espinosista é mais grega que cristã, e até mesmo hebraica. Sua ética não está edificada sobre o altruísmo e nem sobre uma bondade natural ou solidária, mas sobre uma realidade natural. Encontra-se aqui o desconforto de Spinoza em relação a tradição ética cristã, pois acreditava que um sistema moral que ensina o homem a ser fraco, não pode ter nenhum valor. Aqui se pode traçar uma semelhança entre Spinoza e o filósofo prussiano Friedrich Nietzsche que julgava essa moral cristã de decadente:
De um lado, eu nego esse tipo de homem que até agora tem sido considerado como um superior: o dos bons, dos benévolos, dos caridosos; de outro, contradigo uma espécie de moral que chegou a adquirir certa preponderância, chamada mais claramente a moral decadente, a moral cristã।[6]

Spinoza à semelhança de Nietzsche, não via grande qualidade na humildade ou até mesmo no remoço, para ele a virtude tem haver com a capacidade de agir e com o poder. A virtude é um poder de agir, uma forma de capacidade. Spinoza parece construir seu conceito de virtude a partir de Aristóteles e Maquiavel, esse é um dos exercícios de profundo conhecimento em Spinoza, ele constrói um sistema moral moderno reconciliando inconscientemente esses dois sistemas, o clássico e o moderno.
A substância, a qual Spinoza chama de Deus é constituída da matéria (res extensa) e do pensamento (res cogitans)। Portanto, todos os pensamentos são os pensamentos de Deus, uma vez que tudo é uma coisa só। Entre os atributos de Deus, esses são os únicos que o intelecto humano pode atingir. E por atributo, Spinoza entende características ou formas de manifestação de Deus. A substancia é entendida por ele como “o que existe em si e por si é concebido”. É única, pois nada pode existir fora dela e tudo que existe, existe nela [em Deus].
Deus não é pensado em Spinoza aos moldes criacionistas. nem como um ser criador à parte de sua criação, mas Deus é o mundo e tudo se move nele. Nessa perspectiva, Spinoza remete-se a uma citação do apostolo Paulo, em ocasião de uma pregação no Areópago em uma visita missionária à Atenas: “porque nele vivemos e nos movemos e existimos”[7].

3. A LIBERDADE

Se no pensamento de Thomas Hobbes não há lugar para a liberdade, porque à semelhança de Newton sua visão de mundo é mecanicista, ou seja, tudo é determinado pelas mesmas leis, pela mesma mecânica
[8], para Spinoza a liberdade é a consciência da necessidade. Ainda que para ele ninguém seja verdadeiramente livre, há a idéia de liberdade no ser humano, mas que nunca atingirá o livre-arbítrio. Só Deus é completamente livre e só ele é “causa absoluta de si”, portanto, o único que pode agir em plena liberdade.
Ter a consciência ou o conhecimento da necessidade é está incerido no processo libertário. O conhecimento é libertador, pois ajuda o ser humano a ter consciência das causa imanentes das coisas. Portanto, liberdade em Spinoza é o mover-se espontaneamente, levado pela força interna própria que se rege pelo determinismo. Esse conceito conservado desde Aristóteles, de que a liberdade é a causa de si (causa sui), é suscitada do período helenístico, mais precisamente do estoicismo, de onde Espinosa busca o termo.
É num rápido passeio pela filosofia estóica, que logo se percebe semelhanças com a ética de Spinoza. Embora os estóicos não estejam pensando em um sistema ético, chegaram a conclusões semelhantes às de Spinoza. Uma delas é o determinismo fortemente notório na ética espinosista. Mas aqui surge uma aporia que precisa ser solucionada, como pensar a liberdade em uma filosofia determinista? Como conceber o homem livre se o máximo que esse homem pode fazer é aceitar a realidade para ser feliz? Eis aqui um ponto crucial e de extrema complicação na ética de Spinoza. Os estóicos achavam que deveriam aceitar todos os fatos da vida com tranqüilidade e sem dar margem ao sentimentalismo ou as paixões. No entanto, só há liberdade no homem naquilo que lhe é inerente. Ou seja, só há a verdadeira liberdade quando o homem se deixa levar pelas determinações exteriores. Um exemplo faz-se necessário aqui. Pensando do ponto de vista marxista, no contexto dos conflitos de classe, e dos problemas de desigualdades sociais, Spinoza admitiria que as circunstancias políticas e sociais poderão exercer fortes influencias na vida das pessoas, mas somente se elas exercerem naturalmente as possibilidades que lhes são próprias e determinadas, só assim serão verdadeiramente livres e felizes. No entanto, liberdade é viver conforme a natureza, e não podendo viver livremente sem essa compreensão, eis ai o salto para sua teoria da liberdade.

4. DA SUBSTÂNCIA À TEORIA DA LIBERDADE

O grande salto pra liberdade é a consciência de que tudo acontece por determinação, porque tem que acontecer, só assim chega-se a compreensão do todo, da natureza. Essa consciência pode ser prejudicada, como na maioria das vezes o é, pelas paixões, que arrebata o homem da felicidade, fazendo-o desejar, por exemplo, o prazer por algo que conseguinte não está determinado e que nunca acontecerá trazendo desilusões e incompreensões na vida. O homem na sua falta de “consciência da necessidade” afasta-se da liberdade e prende-se ao engano do que não pode acontecer, inventando assim razões que não corresponde à realidade. A res cogitans aparece como uma dynamis, que conduz o homem a compreender a natureza e obter a liberdade.
Sua teoria da liberdade é inteiramente intrínseca a seu entendimento de Deus, ou natureza. Uma vez que só a substância é plenamente livre, e o ser humano está inserido nessa substancia, tudo acontecerá por ordem da mesma, que ordena e constrói. A consciência que entende ser um com a natureza dá um grande passo para liberdade de fato. Essa liberdade afasta-se do livre-arbítrio e vê no fenômeno o efeito mecânico das leis que são invariáveis. Spinoza, com um único golpe derruba das nuvens o “marioneteiro” que dirige do céu sua criação e o arrasta para o ente. À semelhança do que Aristóteles faz com Platão trazendo o Ser para as coisas, Spinoza faz com as tradições judaica e cristã. É isso que ele chama de ver as coisas “sob a perspectiva da eternidade” (sub specie aeternitatis).
A consciência da necessidade é a base para felicidade e para a liberdade, a percepção dos efeitos é entendida de forma imanente as causas, que tudo é de acordo com sua própria potência, e só entendendo isso é que o homem se liberta das causa externas. Essas causas externas por sua vez, interagem com o homem expressando o próprio ser. Isso é o abrir-se a vida é aumentar sua potência para agir.

5. CONCLUSÃO

Por fim, poder-se-á afirmar a essa altura, que a ética de Espinosa se sustenta sobre uma forte concepção ontologia e epistemológica. É ontológica quando se compreende a ética imanente a essa natureza como processo determinante na própria existência. Epistemológica no campo da liberdade, pois só é possível viver livremente quando se compreende a si mesmo como parte da natureza:


“Sua ética é imanente à construção dos entes, implicada na própria natureza das coisas, fundamentando-se assim na ontologia mas também, e por conseguinte, em uma epistemologia: pois que para vivenciarmos a liberdade humana, é preciso compreendermos a nós próprios e à natureza”[9].


Entender Espinosa não constitui tarefa fácil, nem muito menos deve ser desapreciado ou até mesmo rejeitado, mas sim estudado cuidadosamente, pois se encontrar com esse filósofo em uma tradição racionalista, da qual fazem parte Descarte, Locke, Hume e Berkeley, é o situar entre filósofos de grande estima. A ética em Spinoza é uma síntese entre potência de pensar e potência de agir. O mundo é regido pelo determinismo e não pela finalidade, daí o caráter “geométrico” de demonstração de Spinoza, ou seja, porque ele aplica o método rigorosamente científico, o método matemático.
A Ética de Spinoza (Ethica ordine geometrico demostrata) exige leituras espaçadas e com muita atenção aos termos utilizado pelo autor. È um livro bastante intrigante e inovador em sua época, tanto é que Spinoza adiara sua publicação temendo repressão e condenação, vindo a ser publicada somente após sua morte, junto com tratados políticos (Tractatus politicus) e o tratado de reforma do pensamento (Tractatus de emendatione intellectus), ambos incompletos.


6. BIBLIOGRAFIA

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário De Filosofia. Martins Fontes, Ed. 4. 2000.

Coleção Os Pensadores – Espinosa. Nova Cultural

CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. Ática, São Paulo, 2000.

CHAGAS, Eduardo Ferreira. Feuerbach e Espinosa: Deus e natureza, dualismo ou unidade? Artigo recebido em jul/06 e aprovado para publicação em nov/06.

DURANT, W. História da Filosofia. Lisboa, 1995

ESPINOSA, B. Ética. Trad. Joaquim de Carvalho. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.

GAARDEN, Jostein. O mundo de Sofia: Romance da história da filosofia, Companhia das letras, São Paulo, 1995.

MARTINS, André. Da natureza espinosiana: ontologia, epistemologia e ética. Ethica (ISSN:1413-8093), vol.5, n.1. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Gama Filho, 1998. p.104-119.


MISRAHI, Robert. Spinoza: un itinéraire du bonheur par la joie. Paris: Jacques Grancher, 1992.
[1] Bacharelando em Teologia pelo Seminário Teológico Congregacional do Nordeste (STCN), e em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). damásio_ufc@hotmail.com.

[2] Qwrb “Bento, Bendito, Bem-aventurado, Feliz”. No contexto religioso esta palavra conota o estado de “prosperidade” ou “felicidade” que vem quando um soberano concede seu favor (bênção) a alguém.

[3] Durant, W. História da Filosofia. Lisboa, p. 160

[4] O sistema ético de Espinosa abarca três vocábulos de muita importância para compreender seu pensamento ético, são eles: Substância, Atributo e Modo.


[5] CHAGAS, Eduardo Ferreira. Feuerbach e Espinosa: Deus e natureza, dualismo ou unidade? Artigo recebido em jul/06 e aprovado para publicação em nov/06. (Professor Doutor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará-UFC.

[6] NIETZSCHE, friedrich W. Ecce Homo, p 119.

[7] Atos 17, 28. O contexto em que Paulo faz tal afirmação é justamente uma tentativa de convencer os filósofos epicureus e estóicos acerca da ressurreição de Cristo. Não é a toa que Spinoza se refere a esse texto pois é justamente nos estóicos que ele busca elementos de sua filosofia. Paulo parte da crença no criacionismo, é uma tentativa de convencer os estóicos que a natureza foi criada e não auto gerada. Diz-se que Spinoza recebeu a excomunhão com estoicismo “nada me compele a nada”.

[8] Do grego mecanh,, “maquina”.

[9] MARTINS, André. Da natureza espinosiana: ontologia, epistemologia e ética. Ethica (ISSN:1413-8093), vol.5, n.1. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Gama Filho, 1998. p.104-119.

Um comentário:

Pedro Lisboa disse...

Amigo, contém alguns erros.
Ps. Remorso. Não é remoço.
Abraços. Pode excluir meu comentário se quiser. Só pra te avisar.

Ps2. o trabalho me ajudou. obrigado.