quinta-feira, 19 de junho de 2008

NEO-ORTODOXIA
Rudolf Bultmann e Karl Barth

Marcos Roberto Damásio da Silva
[1]

"Deus nos encontra onde a possibilidade humana é nada, e somente aí" (Rudolf Bultmann)

Traçar os caminhos que esses dois vultos da teologia contemporânea passaram não constitui tarefa fácil nem de pouco interesse. Mas, no entanto tentarei mostrar de forma muito resumida alguns pontos onde diferem esses dois monstros da erudição teológica contemporânea. De início é certo e cabível afirmar que ambos foram educados na tradição teológica liberal que ainda estava predominando na Europa e principalmente na Alemanha, berço do avassalador liberalismo teológico.
O liberalismo teológico teve início com Friedrich Schleiermacher (1768-1834) um teólogo, filósofo e pedagogo alemão, e constitui uma adaptação da teologia cristã ao mundo moderno. Esse projeto teológico intenta sacrificar a ortodoxia em nome da contemporaneidade. Para Schleiermacher a ortodoxia tradicional não cabia mais ao mundo moderno, por tanto, para ele, uma teologia inaceitável. Schleiermacher é um teólogo muito importante para teologia contemporânea, e não só isso, mas, é também um pensador importante para hermenêutica atual. Para Barth, ele fundou além de uma escola teológica, mas também uma era, a era da religião experimental, sentida e vivida em parâmetros modernos.
Portanto, é no fim desse período que surge o descrédito com o racionalismo e com as propostas céticas de um mundo submerso em guerras, pobrezas e fome. É também nesse período que surge grandes vultos da teologia moderna, entre eles destacam-se, e é o foco desse paper, o suíço Karl Barth (1886-1968) nascido em Basiléia em 1886 e o alemão Ruldof Bultmann (1884-1976) em Wiefelstede no oeste da Alemanha. Tanto um como o outro se afastaram do liberalismo teológico e da enfadonha busca pelo Jesus histórico iniciada por Reimarus (1694-1768), um erudito alemão professor de línguas estrangeiras em Hamburgo.
Aos poucos se pode notar que os caminhos desses homens começam a se afastarem. Seus projetos tendem a caminhar em visões diferentes. Barth substitui a tradição liberal, onde fora educado, por uma teologia dogmática e mais ortodoxia, no entanto, Bultmann se afasta do liberalismo e passa a analisar a narrativa dos evangelhos instaurando uma versão existencialista do cristianismo. Enquanto Barth retorna a uma teologia da palavra de Deus, Bultmann põe em marcha seu programa de desmitologização atacando fortemente a hermenêutica liberal. Ambos são influenciados pela filosofia existencialista, Bultmann influenciado pelas leituras de Martin Heidegger (1889-1976) e Barth pelas do teólogo e filósofo dinamarquês Sören Aabye Kiekegaard (1813-1855).
A neo-ortodoxia como o próprio nome sugere, é uma teologia nova, mas com cara de velha. É uma reação ao liberalismo teológico, e a afirmação de velhas doutrinas concernentes a Jesus e as escrituras. Na verdade um esforço em reafirmar a fé, (embora pra isso tenha que sacrificar algumas elementos do cristianismo histórico). Mas é também uma resposta aos problemas da religião que o racionalismos já não mais poderia dar pelas catástrofes da Primeira Grande Guerra Mundial
[2].
É atribuído a Barth o início dessa escola teológica que também é denominada de “teologia da crise” ou “teologia dialética”
[3], onde a verdade é descoberta na síntese dos contrários, fundando com isso uma teologia dinâmica de caráter mais pragmático. Ele reage a tentativa de amordaçar as escrituras e se utiliza de Kiekegaard na sua tarefa de salvar a fé. Acerca de Barth o Papa Pio XII escreveu: “O maior teólogo desde São Tomás de Aquino”[4]. Um prestígio alcançado pelos esforços empreendidos em nome do Reino de Deus. Se Bultmann tem como alvo o mito, Barth tem a revelação de Deus. Ele cria uma bifurcação entre Palavra Revelada de Deus que é Deus se revelando ao homem através de Jesus Cristo, e a Palavra Escrita de Deus, que é a Bíblia, ou seja, é a narrativa dos eventos dessa revelação ao homem no decorrer dos tempos.
Para Barth a Bíblia é um livro onde estão registrados os feitos de uma revelação, e que só através dela se pode chegar a compreensão que Deus se revelou através de Jesus, o seu filho. Ela é falível e sua função é apenas apontar para a revelação de Deus em Jesus. A Bíblia só é a palavra de Deus quando ela exerce a função esclarecedora do entendimento humano sobre Jesus, ou seja, que Deus se revelou no tempo ao homem por Jesus, por isso ela se torna a palavra de Deus. Embora questionasse o método histórico-crítico, não o tem como princípio norteador para uma correta interpretação bíblica, entendia haver positividade em alguns aspectos desse método. O aspecto dialético da teologia barthiana conclui que o kérigma
[5] é o fundamental nas escrituras. Esses é um aspecto que uni Barth e Bultmann, uma teologia kerigmática, Pois, isso se dá pela ruptura com o racionalismo. A razão humana não pode ser o critério mais preponderante na análise dos escritos bíblicos.
Bultmann, como já fora salientado, posiciona-se radicalmente diferente a qualquer postura ortodoxa em relação à Bíblia. A influência de Heidegger, que fora seu colega na Universidade de Marburg, norteou sua postura ante a interpretação dos evangelhos e das cartas do Novo Testamento. Bultmann afirmara que a filosofia de Heidegger estava dizendo a mesma coisa que o Novo Testamento. A postura de Bultmann foi vestir o cristianismo da filosofia existencialista, lendo as escrituras como um documento heideggeriano. Ele adotou o método histórico-crítico para varrer das escrituras qualquer elemento mitológico e anti-existencial, não deixando quase nada dos Credos Apostólico e Niceno intactos.
A demitização ou desmitologização (Entmythologisierung)
[6] é um programa de interpretação dos mitos, para daí extrair o kérigma, e não uma pretensa rejeição dos mesmos, encontrados nas escrituras como fez Harnack e os liberais. Ou seja, é o ato de reconhecer o mito com o propósito de salientar o significado simbólico. A desmitologização é um termo retirado da filosofia de Heidegger, aliás, quase nada em sua teologia é inédito. Para Bultmann, os mitos devem ser interpretados existencialmente, só assim o homem compreenderia corretamente a realidade que o permeia. O mito é a marca de uma sociedade que não dispunha de métodos adequados e relevantes, como por exemplo, a ciência e a tecnologia, e por isso constituía o meio mais eficaz para ensinar sobre deus, o homem, e sobre o mundo. Bultmann não considerava isso um erro das civilizações mais antigas, só não cabia mais a civilização moderna, por isso a reinterpretarão do mito fazia-se necessária. Em Barth a coisa já não é tão radical assim, mas também não pode ser entendida como um retorno à ortodoxia tradicional iniciada pelos Pais Apostólicos e reafirmada pela Reforma Protestante, mas, é uma neo-ortodoxia.
Os principais críticos da teologia de Bultmann como Cullmann, Jaspers e o próprio Barth atacam principalmente a influência heideggeriana em sua hermenêutica do Novo Testamento. A não importância e a demitização dos fatos históricos, junto com a supervalorização das ciências modernas, são uma espécie de “camisa de força” (expressão usada por Barth) para a interpretação dos escritos do Novo Testamento. Bultmann em busca de asseverar a fé conseguiu transformar o cristianismo em uma filosofia de vida retirando da bíblia sua força histórica reduzindo-a a uma linguagem mitológica carente de adaptações modernas e contextualizadas para salvar sua relevância. Nisso consiste sua hermenêutica.
Já os críticos de Barth proferem suas críticas mais virulentas na conceituação dicotômica entre Historie e Geschichte também encontrada na teologia de Bultmann, e popularizada por este. A língua alemã, diferente do português é muito precisa em sua semântica, fornecendo assim aos neo-ortodoxos uma criação de duas esferas da história a partir de duas palavras correspondente a “história” no português, a Historie, ou seja, a história de fato, cronológica, relacionada aos fatos históricos, e a outra, é Geschichte. O termo Geschichte subtende a relevância de um significado histórico, para Barth é na “história da fé”, (Heilsgeschichte)
[7] santa, salvífica que se encontra a Bíblia. Para Barth não importa se a ressurreição aconteceu ou não, mas sim, o que ela representa para humanidade. O que tanto Barth como Bultmann negam é a veracidade dos eventos sobrenaturais que envolveram o Jesus histórico.
É comum encontrarmos diversas críticas a Barth e a Bultmann provindas principalmente dos reformados e dos fundamentalistas. Alguns reformados à nível de Brasil, ainda tentam salvar a teologia de Barth, como o doutor em Estudos Históricos e Teológicos no Westminster Theological Seminary, Ricardo Quadros Gouveia, que atualmente é professor adjunto da Universidade Presbiteriana Mackenzie e é professor visitante da Universidade Federal de Juiz de Fora. Para ele, Barth constitui “a maior expressão do pensamento reformado no século 20” e tece criticas ao que ele chama de “ultraconservadores” e “mentiras fundamentalistas”.
Já o presbítero reformado Francisco Solano Portela que é Mestre em Teologia Sistemática (Th.M.) pelo Biblical Theological Seminary (EUA, 1974) não concorda com a posição do doutor Ricardo Quadros Gouveia, e em um artigo postado no blog “O Temporas, O Mores!” em 25 de maio de 2006, ele afirma: “Exatamente por essa razão, [por não está em conformidade com a Confissão de Fé de Westminster] não dá pra classificar Barth de ‘reformado’, como fazem muitos (nem dá para se entusiasmar com a teologia de Bonhoeffer, que é igualmente neo-ortodoxo – apesar de ser sempre citado, corretamente, como um modelo de coragem na postura cristã, por sua resistência ao nazismo)”. E ainda acrescenta: “O conceito de Barth das Escrituras é tudo MENOS reformado”.
Um outro reformado que merece citação aqui, e talvez o mais influente entre os presbiterianos, é o Doutor Augustos Nicodemus Lopes, que ora tece elogios a neo-ortodoxia, principalmente pela luta contra o liberalismo teológico, e ora dá algumas alfinetadas na teologia de Barth, mas em relação à teologia de Bultmann [lembrando que Bultmann era um luterano confesso e não um reformado] ele é categoricamente crítico e chega a afirmar que: “sua obra nem cristã poderia ser considerada”. E mais: “... do ponto de vista dos estudos reformados do Novo Testamento, há pouca coisa que possa ser considerada positiva em Bultmann”.
Embora toda avalanche de críticas e calunias, Bultmann e Barth são dois gênios da teologia contemporânea, e ninguém os rouba tal prestígio. Eles mostram que há alternativas teológicas em tempos difíceis para igreja e não somente a ortodoxia [que reinou soberana por mais de mil anos] pode ser tida como a única e possível afirmação da verdade. Esses homens não podem ser ainda execrados, vilipendiados, tidos como hereges e acusados de corromper o “verdadeiro evangelho”. Seus críticos são aqueles que nunca puderam olhar a teologia bíblica fora de suas trincheiras tradicionalistas e sem seus óculos denominacionalistas que os dizem o tempo todo “isso é assim”, “isso não pode ser assim” e tudo que fuga disso é do “diabo”. Ainda seus postulados são medievais, seus axiomas e proposições assentam-se sobre a cátedra histórica, sobre a falácia do Argumentum ad antiquitatem
[8] que apela à argumentos pautados na antigüidade ou na tradição [no mínimo é isso que se deixa transparecer nos reformados e nos fundamentalistas de então], firman-se sobre uma cultura livresca que os permitem apenas a inércia, e não se permitem o exercício da reflexão e da analise crítica de tudo que se pôs em seus ombros por uma cultura histórica e mediada pelo temor do inferno e ansiada pelo céu niilista. Mas uma única coisa pode ser dita ao fim dessas linhas, ninguém detém a mente de Cristo, e nem se pode reivindicar a autoridade legal e única das Escrituras [principalmente a ortodoxia], pois elas, a ninguém pertencem e a nenhuma interpretação se curvam. Com isso resta-nos apenas a liberdade do Evangelho em relação a existência humana.

NOTAS:
[1] Bacharelando Filosofia Pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
[2] A primeira Grande Guerra durou de Julho de 1914 a Novembro de 1918 e iniciado por um confronto regional entre o Império Austro-Húngaro e a Sérvia.
[3] Fazem parte dessa escola além de Karl Barth e Rudolf Bultmann, Emil Brunner, Friedrich Gogaten, Eduard Thurneysen. Para uma melhor compreenção dessa teologia, consultar: GRENZ, Stanley e OLSON, Roger. Teologia do Século XX: Deus e homem numa era de transição. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
[4] Citado por: LANE, Tony. Pensamento Cristão: da Reforma à Modernidade, v. 2, p. 110.
[5] khrugma, “aquilo que é proclamado por alguém“. É o objeto da proclamação do arauto (khrux). Para Bultmann o kerigma cristão tem seu parâmetro em Paulo e João, no resto do Novo Testamento é quase secundário.
[6] Para o doutor Gottfried Brakemeier, professor de teologia sistemática na Escola Superior de Teologia em São Leopoldo no Rio Grande do Sul, na apresentação da 9ª edição da Teologia do Novo Testamento publicada pela Editora Teológica em 2004: “O termo ‘demitologização’ não é muito feliz, pois o objetivo de Bultmann não consiste em eliminar o mito, e sim, em interpretar-lo existencialmente. Volta conferir que na concepção de Bultmann fé não tem por conteúdo fatos históricos”. (BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento, p. 49)
[7] Barth não usa o termo “Heilsgeschichte” (história da fé, história da salvação), prefere o conceito de “Geschichte”. Para mais detalhes sobre o assunto cf.: HÄGGLUND. História da Teologia, p. 349.
[8] Essa é a falácia que afirmar que uma idéia ou conceito é certo, simplesmente por ser antigo ou asseverar acerca da tradição.

Um comentário:

Anônimo disse...
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