sexta-feira, 25 de abril de 2008


A ÉTICA DE SPINOZA:
DA SUBSTÂNCIA A TEORIA DA
LIBERDADE


Marcos Roberto Damásio da Silva[1]


“Tenho-me esforçado por não rir das ações humanas, por não deplorá-las nem odiá-las, mas por compreendê-las.”
Baruch de Espinosa


RESUMO:

O presente artigo intenta apresentar de forma clara e objetiva a ética de Espinosa e mostrar a passagem “da substância à teoria da liberdade” neste autor tão fecundo e de extrema importância para o pensamento filosófico moderno. Centralizar-se-á em analisar conceitos como; “substância”, “Deus” e “liberdade”. Propõe-se em dá o devido crédito a originalidade de Espinosa que de maneira brilhante inicia sua concepção ética partindo de um plano ontológico nunca abordado, e de um profundo labor filosófico. O texto também é resultado de uma exigência à cadeira de Ética ministrada pela Professora Mestra em filosofia Regiane Lorenzetti Collares, na Universidade Federal do Ceará, Campus Cariri, 2007.2.

Palavras-chave: Substancia, Deus, Liberdade, Natureza, Ética.


RESUMÉ:

Le présent article prétend presente de forme clair et objetive l’éthique de Espinosa et montre le passage “de la substance à la théorie de la liberté” de cet auteur tant fécond et d’extrème importance pour la pensée philosophique moderne. Il se centralisera à analiser les concepts comme “substance”, “Dieu” et “liberté”. Il se propose de donner du crédit à l'originalité de Espinosa qui de Manière brillante initie sa conception éthique à parir d’une plan ontologique jamais aborder, et d’un profond travail philosophique. Le texte est aussi le résultat d’une exigence en matière d’éthique de la professeur en philosophie Regiane Lorenzetti Collares à Universidade Federal do Ceará, Campus Cariri, 2007.2.

Mots-clé: Substance, Dieu, liberté, Nature, Éthique.

1. INTRODUÇÃO

Na Idade Moderna a sociedade européia viveu uma época de profundas transformações. É também um período que se mostra ainda em partes ligada à Idade Média. Mas há, sobretudo, um profundo desejo de mudanças; umas extremamente radicais, outras apenas para assegurar uma nova classe social que emergia das ruínas de uma aristocracia decadente. A filosofia nesse período não escapou a tantas mudanças, e é, ela mesma, também agente e foco de tais revoluções. Tanto os questionamentos dessa época, e as legitimações assim também como as modificações fortalecem os pensadores desse período, transformando-os em verdadeiros expoentes de idéias que tiveram grande contribuição para uma época que legou à posteridade uma verdadeira marca no pensamento filosófico. Entre gigantes da filosofia, destaca-se o filósofo holandês Baruch de Spinoza.
Baruch de Spinoza nasceu em uma família tradicionalmente judia, no dia 24 de novembro de 1632, na cidade de Amsterdã, Holanda, (no mesmo ano em que nasceu o filósofo inglês John Locke-1632-1704) vindo a falecer com 44 anos em Haia em 1677, onde viveu por sete anos, vindo a contrair uma tuberculose. De família oriunda de Espanha, mudou-se para Portugal e daí para a Holanda, por causa das perseguições dirigidas pela “Santa inquisição”. Seu nome hebreu era Baruch
[2], que significa abençoado. Em suas obras publicadas em Latim assinava Benedictus Spinoza. Spinoza foi educado na comunidade hebraica de Amsterdã e cedo recebeu os ensinamentos do Talmude, era um notável estudante que passava horas e horas na biblioteca da Sinagoga. O forte desejo pelos estudos o levou a aprender latim, com o mestre holandês, Van den Ende, de forma a poder ler os filósofos cristãos da Idade Média. Foi através do conhecimento do latim que Spinoza ficou apto para adentrar as leituras dos clássicos, principalmente Platão, Aristóteles, Demócrito, Epicuro e Lucrécio.
Em 1656 foi excomungado pela comunidade israelita e expulso da sinagoga de Amsterdã, acusado de “heresias praticadas e ensinadas”. Mas antes da excomunhão, conta-nos Will Durant, em sua História da Filosofia, que lhe foi oferecida uma anuidade correspondente a 500 dólares em troca de manter-se, pelo menos na aparência, leal à sinagoga e à velha fé, escreve Durant: “Espinosa recusou a oferta - e a 27 de Julho de 1656 foi solenemente excomungado de acordo com o rito hebreu”
[3] Mesmo não sendo um judeu por convicção religiosa, a excomunhão é uma marco em sua vida. Após aquele momento Spinoza nunca mais seria o mesmo.
Após a excomunhão, Spinoza passou a viver meio que isolado, seu pai que a muito não via com bons olhos seus estudos de filosofia, o abandonou, assim também como sua irmã, que por pouco não o prejudicou com a separação da herança da família. Foi nesse período de relativo isolamento que Spinoza manteve contato com grandes intelectuais de sua época, foi nessa época também que sua fama de grande filósofo começou a se espalhar pela Europa. Filósofo notável e de grande estima, em nome de sua liberdade recusou o convite de lecionar filosofia na Universidade alemã de Heidelberg, considerava a liberdade mais importante que as limitações impostas aos professores universitários. Suas principais obras foram: Ética Exposta ao Modo Geométrico; Tratado Teológico-Político; Tratado da Reforma do Entendimento; e Epistolário. A sua obra Ética é ainda hoje considerado uma obra-prima da filosofia.

2. A SUBSTÂNCIA

É da noção de substância que Spinoza conjuga sua teoria da liberdade. Mas antes de qualquer aceno sobre tal teoria, cabe aqui uma breve conceituação do termo substância. Por substância Spinoza entende a realidade, a essência imutável e eterna, é a ordem das leis e das relações invariáveis. É importante afirmar que sua ética foi escrita em latim e que sua terminologia é extraída da filosofia escolástica que estudara de forma afinca com seu mestre holandês Van den Ende. Spinoza identifica a substância como sendo o mesmo que “ordem eterna” para os escolásticos. Mas substância não é a matéria constituída de qualquer coisa, como muitos imaginam, mas a isso, Spinoza chama de modo (modus), ou seja, a ordem temporal das coisas que perecem. Em outras palavras, a manifestação da substância, ou seja, os fenômenos do cotidiano. A substância é a natureza ativa, ou até mesmo Deus. Já o modo é a natureza passiva, a matéria ou o mundo.
[4]
São possíveis alguns diálogos entre a filosofia de Espinosa e outros filósofos. Enquanto em Descartes, Spinoza encontra sua antítese, é em Maquiavel que ele encontra de certa forma, uma similaridade de pensamento ético. Em Descartes há um dualismo entre extensão e pensamento. Para ele tanto extensão como pensamento, constituem a substância finita, e uma infinita que é causa sui,


“Em Descartes existem, então, três substâncias e, na verdade, duas finitas, criadas, a corporal (extensa) e a pensante, e uma substância infinita, incriada e independente, isto é, Deus”[5].


Já Spinoza rejeita essa concepção dualista e introduz um monismo onde ele une extensão e pensamento numa única substância, Deus. No fundo a ética espinosista é mais grega que cristã, e até mesmo hebraica. Sua ética não está edificada sobre o altruísmo e nem sobre uma bondade natural ou solidária, mas sobre uma realidade natural. Encontra-se aqui o desconforto de Spinoza em relação a tradição ética cristã, pois acreditava que um sistema moral que ensina o homem a ser fraco, não pode ter nenhum valor. Aqui se pode traçar uma semelhança entre Spinoza e o filósofo prussiano Friedrich Nietzsche que julgava essa moral cristã de decadente:
De um lado, eu nego esse tipo de homem que até agora tem sido considerado como um superior: o dos bons, dos benévolos, dos caridosos; de outro, contradigo uma espécie de moral que chegou a adquirir certa preponderância, chamada mais claramente a moral decadente, a moral cristã।[6]

Spinoza à semelhança de Nietzsche, não via grande qualidade na humildade ou até mesmo no remoço, para ele a virtude tem haver com a capacidade de agir e com o poder. A virtude é um poder de agir, uma forma de capacidade. Spinoza parece construir seu conceito de virtude a partir de Aristóteles e Maquiavel, esse é um dos exercícios de profundo conhecimento em Spinoza, ele constrói um sistema moral moderno reconciliando inconscientemente esses dois sistemas, o clássico e o moderno.
A substância, a qual Spinoza chama de Deus é constituída da matéria (res extensa) e do pensamento (res cogitans)। Portanto, todos os pensamentos são os pensamentos de Deus, uma vez que tudo é uma coisa só। Entre os atributos de Deus, esses são os únicos que o intelecto humano pode atingir. E por atributo, Spinoza entende características ou formas de manifestação de Deus. A substancia é entendida por ele como “o que existe em si e por si é concebido”. É única, pois nada pode existir fora dela e tudo que existe, existe nela [em Deus].
Deus não é pensado em Spinoza aos moldes criacionistas. nem como um ser criador à parte de sua criação, mas Deus é o mundo e tudo se move nele. Nessa perspectiva, Spinoza remete-se a uma citação do apostolo Paulo, em ocasião de uma pregação no Areópago em uma visita missionária à Atenas: “porque nele vivemos e nos movemos e existimos”[7].

3. A LIBERDADE

Se no pensamento de Thomas Hobbes não há lugar para a liberdade, porque à semelhança de Newton sua visão de mundo é mecanicista, ou seja, tudo é determinado pelas mesmas leis, pela mesma mecânica
[8], para Spinoza a liberdade é a consciência da necessidade. Ainda que para ele ninguém seja verdadeiramente livre, há a idéia de liberdade no ser humano, mas que nunca atingirá o livre-arbítrio. Só Deus é completamente livre e só ele é “causa absoluta de si”, portanto, o único que pode agir em plena liberdade.
Ter a consciência ou o conhecimento da necessidade é está incerido no processo libertário. O conhecimento é libertador, pois ajuda o ser humano a ter consciência das causa imanentes das coisas. Portanto, liberdade em Spinoza é o mover-se espontaneamente, levado pela força interna própria que se rege pelo determinismo. Esse conceito conservado desde Aristóteles, de que a liberdade é a causa de si (causa sui), é suscitada do período helenístico, mais precisamente do estoicismo, de onde Espinosa busca o termo.
É num rápido passeio pela filosofia estóica, que logo se percebe semelhanças com a ética de Spinoza. Embora os estóicos não estejam pensando em um sistema ético, chegaram a conclusões semelhantes às de Spinoza. Uma delas é o determinismo fortemente notório na ética espinosista. Mas aqui surge uma aporia que precisa ser solucionada, como pensar a liberdade em uma filosofia determinista? Como conceber o homem livre se o máximo que esse homem pode fazer é aceitar a realidade para ser feliz? Eis aqui um ponto crucial e de extrema complicação na ética de Spinoza. Os estóicos achavam que deveriam aceitar todos os fatos da vida com tranqüilidade e sem dar margem ao sentimentalismo ou as paixões. No entanto, só há liberdade no homem naquilo que lhe é inerente. Ou seja, só há a verdadeira liberdade quando o homem se deixa levar pelas determinações exteriores. Um exemplo faz-se necessário aqui. Pensando do ponto de vista marxista, no contexto dos conflitos de classe, e dos problemas de desigualdades sociais, Spinoza admitiria que as circunstancias políticas e sociais poderão exercer fortes influencias na vida das pessoas, mas somente se elas exercerem naturalmente as possibilidades que lhes são próprias e determinadas, só assim serão verdadeiramente livres e felizes. No entanto, liberdade é viver conforme a natureza, e não podendo viver livremente sem essa compreensão, eis ai o salto para sua teoria da liberdade.

4. DA SUBSTÂNCIA À TEORIA DA LIBERDADE

O grande salto pra liberdade é a consciência de que tudo acontece por determinação, porque tem que acontecer, só assim chega-se a compreensão do todo, da natureza. Essa consciência pode ser prejudicada, como na maioria das vezes o é, pelas paixões, que arrebata o homem da felicidade, fazendo-o desejar, por exemplo, o prazer por algo que conseguinte não está determinado e que nunca acontecerá trazendo desilusões e incompreensões na vida. O homem na sua falta de “consciência da necessidade” afasta-se da liberdade e prende-se ao engano do que não pode acontecer, inventando assim razões que não corresponde à realidade. A res cogitans aparece como uma dynamis, que conduz o homem a compreender a natureza e obter a liberdade.
Sua teoria da liberdade é inteiramente intrínseca a seu entendimento de Deus, ou natureza. Uma vez que só a substância é plenamente livre, e o ser humano está inserido nessa substancia, tudo acontecerá por ordem da mesma, que ordena e constrói. A consciência que entende ser um com a natureza dá um grande passo para liberdade de fato. Essa liberdade afasta-se do livre-arbítrio e vê no fenômeno o efeito mecânico das leis que são invariáveis. Spinoza, com um único golpe derruba das nuvens o “marioneteiro” que dirige do céu sua criação e o arrasta para o ente. À semelhança do que Aristóteles faz com Platão trazendo o Ser para as coisas, Spinoza faz com as tradições judaica e cristã. É isso que ele chama de ver as coisas “sob a perspectiva da eternidade” (sub specie aeternitatis).
A consciência da necessidade é a base para felicidade e para a liberdade, a percepção dos efeitos é entendida de forma imanente as causas, que tudo é de acordo com sua própria potência, e só entendendo isso é que o homem se liberta das causa externas. Essas causas externas por sua vez, interagem com o homem expressando o próprio ser. Isso é o abrir-se a vida é aumentar sua potência para agir.

5. CONCLUSÃO

Por fim, poder-se-á afirmar a essa altura, que a ética de Espinosa se sustenta sobre uma forte concepção ontologia e epistemológica. É ontológica quando se compreende a ética imanente a essa natureza como processo determinante na própria existência. Epistemológica no campo da liberdade, pois só é possível viver livremente quando se compreende a si mesmo como parte da natureza:


“Sua ética é imanente à construção dos entes, implicada na própria natureza das coisas, fundamentando-se assim na ontologia mas também, e por conseguinte, em uma epistemologia: pois que para vivenciarmos a liberdade humana, é preciso compreendermos a nós próprios e à natureza”[9].


Entender Espinosa não constitui tarefa fácil, nem muito menos deve ser desapreciado ou até mesmo rejeitado, mas sim estudado cuidadosamente, pois se encontrar com esse filósofo em uma tradição racionalista, da qual fazem parte Descarte, Locke, Hume e Berkeley, é o situar entre filósofos de grande estima. A ética em Spinoza é uma síntese entre potência de pensar e potência de agir. O mundo é regido pelo determinismo e não pela finalidade, daí o caráter “geométrico” de demonstração de Spinoza, ou seja, porque ele aplica o método rigorosamente científico, o método matemático.
A Ética de Spinoza (Ethica ordine geometrico demostrata) exige leituras espaçadas e com muita atenção aos termos utilizado pelo autor. È um livro bastante intrigante e inovador em sua época, tanto é que Spinoza adiara sua publicação temendo repressão e condenação, vindo a ser publicada somente após sua morte, junto com tratados políticos (Tractatus politicus) e o tratado de reforma do pensamento (Tractatus de emendatione intellectus), ambos incompletos.


6. BIBLIOGRAFIA

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário De Filosofia. Martins Fontes, Ed. 4. 2000.

Coleção Os Pensadores – Espinosa. Nova Cultural

CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. Ática, São Paulo, 2000.

CHAGAS, Eduardo Ferreira. Feuerbach e Espinosa: Deus e natureza, dualismo ou unidade? Artigo recebido em jul/06 e aprovado para publicação em nov/06.

DURANT, W. História da Filosofia. Lisboa, 1995

ESPINOSA, B. Ética. Trad. Joaquim de Carvalho. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.

GAARDEN, Jostein. O mundo de Sofia: Romance da história da filosofia, Companhia das letras, São Paulo, 1995.

MARTINS, André. Da natureza espinosiana: ontologia, epistemologia e ética. Ethica (ISSN:1413-8093), vol.5, n.1. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Gama Filho, 1998. p.104-119.


MISRAHI, Robert. Spinoza: un itinéraire du bonheur par la joie. Paris: Jacques Grancher, 1992.
[1] Bacharelando em Teologia pelo Seminário Teológico Congregacional do Nordeste (STCN), e em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). damásio_ufc@hotmail.com.

[2] Qwrb “Bento, Bendito, Bem-aventurado, Feliz”. No contexto religioso esta palavra conota o estado de “prosperidade” ou “felicidade” que vem quando um soberano concede seu favor (bênção) a alguém.

[3] Durant, W. História da Filosofia. Lisboa, p. 160

[4] O sistema ético de Espinosa abarca três vocábulos de muita importância para compreender seu pensamento ético, são eles: Substância, Atributo e Modo.


[5] CHAGAS, Eduardo Ferreira. Feuerbach e Espinosa: Deus e natureza, dualismo ou unidade? Artigo recebido em jul/06 e aprovado para publicação em nov/06. (Professor Doutor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará-UFC.

[6] NIETZSCHE, friedrich W. Ecce Homo, p 119.

[7] Atos 17, 28. O contexto em que Paulo faz tal afirmação é justamente uma tentativa de convencer os filósofos epicureus e estóicos acerca da ressurreição de Cristo. Não é a toa que Spinoza se refere a esse texto pois é justamente nos estóicos que ele busca elementos de sua filosofia. Paulo parte da crença no criacionismo, é uma tentativa de convencer os estóicos que a natureza foi criada e não auto gerada. Diz-se que Spinoza recebeu a excomunhão com estoicismo “nada me compele a nada”.

[8] Do grego mecanh,, “maquina”.

[9] MARTINS, André. Da natureza espinosiana: ontologia, epistemologia e ética. Ethica (ISSN:1413-8093), vol.5, n.1. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Gama Filho, 1998. p.104-119.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

FRANCIS BACON
Primeira Síntese: O Novum Organum
Esse trabalho é uma exigência da cadeira de História da Filosofia III. Moderna I do curso de Filosofia da Universidade Federal do Ceará, ministrada pelo Professor Cícero Antônio Cavalcante Barroso.

1. Breve Introdução

Os historiadores da filosofia definem a filosofia moderna como o saber iniciado principalmente na Europa do século XVII. O período renascentista é tido como intermediário entre a filosofia medieval e a moderna. Essa transição para a modernidade é marcada pela ruptura com o saber escolástico impregnado pelo aristotelismo, promovendo diversos conflitos entre a igreja e estado. Mas é também um período de definições, pois o modo de pensar ainda oscilava entre conceitos e discussões medievais.
Uma outra marca indelével desse período é a projeção das ciências naturais ou filosofia natural. Esse é um momento de grande efevercência e de uma passagem da ciência especulativa para a uma ciência da atividade ou experimental, muito presente no pensamento Francis Bacon. Ele enalteceu a experiência e iniciou o famoso “método indutivo de investigação científico”. Tal ênfase lhe legou o título por alguns historiados da filosofia de “o iniciador do empirismo”. Os princípios baconianos, que hoje podem ser considerados triviais, tinham por objeto criar um método científico que fazia frente ao método escolástico-aristotélico.
Essa nova forma de pensar rompe definitivamente com a tradição filosófica. O que Bacon intenta promover e realizar aquilo que ele mesmo chamou de Instauratio magna (Grande restauração). Algo estava errado e precisava ser corrigido. Entretanto, o que lhe interessava era a ciencia da natureza que para ele estava acima das ciencias filosofias dos tempos gregos. A ruptura é extremamente profunda, pois rompe de forma concisa com toda a tradição aceita. Bacon chamará sua ciência de philosophia prima, pois dará conta dos princípios fundamentais às várias ciências. Essa philosophia prima difere da proto philosophia, ou seja, a ontologia tradicional encontrada em Aristóteles, que constitui o estudo do “ser em quanto ser”.
Entretanto, o que irá interessar a Bacon é a ciência da natureza, ou o Novum Organum, que conterá as regras do novo método (daí o nome em latim Novum Organum). Esse “novo método” é a construção de uma nova maneira de se estudar os fenômenos naturais constituídos não do raciocínio silogístico aristotélico, mais sim da observação e experimentação através do raciocínio indutivo. Mas isso será melhor avaliado mais à frente.

2. Vida

Francis Bacon (1561-1626) nasceu em York House, Londres em 1561. Pertencente a uma família nobre inglesa teve sua educação humanista e voltada para política. Seu pai, Sir Nicholas Bacon não era um homem comum na Inglaterra e durante o reinado de Elizabeth foi o guardião do Sinete. Sua mãe, lade Anne Cooke era teóloga e lingüista tornando-se instrutora do filho em assuntos políticos e intelectuais. Com doze anos foi estudar no Trinity College, onde estudou filosofia por três anos e onde também viu que ela não tinha fins práticos, nascendo com isso uma mente crítica e hostil a filosofia predominante. Também estudou na Universidade de Cambridge, mas se formou no Gray's Inn em 1576 em direito. Foi em Gray's Inn que teve uma formação política onde alcançou diversas posições, como procurador-geral, grande chanceler, visconde de Saint Albans e outras posições de muita estima.
Bacon não foi um homem que desfrutasse de boa reputação, era muito ambicioso e foi acusado de crimes contra a administração pública sendo condenado a pagar multas pesadas e proibido de exercer cargos públicos. Como escritor, pode-se dizer que foi notável e prolífero e somente a morte em 1626 interrompeu seu grande projeto de reforma do conhecimento. Após o incidente político e as acusações de corrupção, foi perdoado pelo rei e se retirou para suas terras onde se dedicou inteiramente à vida intelectual. Foi um pensador que influenciou filósofos com Hobbes e Locke, ambos também ingleses, que projetaram suas filosofias no mesmo rumo, contribuindo muito para o avanço do empirismo na Inglaterra e na Europa. Considerado como o ultimo pensador antigo e o primeiro dos modernos, era dono de uma capacidade intelectual privilegiada, chegou a propor o pleno domínio do homem sobre a natureza, sintetizada na célebre frase: “saber é poder”. A ciência tem que ser o instrumento de restabelecimento do imperium hominis (império do homem) sobre as coisas, e nem a filosofia deve ser apenas uma análise especulativa ou meramente abstrativa deve ser também algo da praxis do homem.
Francis Bacon morreu em 9 de abril de 1926 aos 65 anos de idade em Londres, vítima de bronquite. Fazia experimentos sobre o frio e queria saber por quanto tempo o frio preservava a carne. Apenas um ano depois foi publicada sua obra Nova Atlantis (Nova Atlântida), na qual descreve a cidade ideal dos sábios. Bacon foi um pioneiro da ciência moderna e demonstrou preocupações com a utilização do conhecimento cientifico iniciada por Nicolau Copérnico. Seu legado é vasto e sua obra é dividida em três partes: jurídica, literária e filosófica.

3. O Novum Organum e a Teoria dos Ídolos

Como já fora mencionado, o que encontra-se no Novum Organum é uma constante oposição ao Organum de Aristóteles e uma formulação de um novo método científico. Contra Aristóteles ele despeja suas críticas mais virulentas e acusa-o de corromper com sua dialética a filosofia natural, pois para ele seu método ou “doutrina dos ídolos” é a interpretação da natureza. Entretanto como ele mesmo afirma: “A formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem duvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos” . Aqui, encontra-se os primeiros ensaios na formação do método indutivo.
O Novum Organum tem claras pretensões de substituir o Organum de Aristóteles. Segundo ele, o que impe as pessoas de compreender a verdade e a ciência é um tipo de enfeitiçamento ou um bloqueiamento da mente humana provocada pelos “ídolos”. Bacon se utiliza de uma palavra grega pra expressar o estado do homem em seu tempo, o termo eidolon introduz a idéia de uma falsa divindade, é uma referencia ao engano da falsa religiosidade. Em uma linguagem retirada do contexto religioso, muito predominante em seu tempo, Bacon introduz a noção de idola, (em latim) iniciando sua teoria dos ídolos. Os ídolos no pensamento de Bacon expressam as falsas noções dos homens e são responsáveis pelo insucesso na ciência e na filosofia. Esses ídolos são de quatro gêneros: ídolo da tribo, ídolo da caverna, ídolo do foro e ídolo do teatro.

3.1. Ídolos da Tribo

Idola Tribus, o próprio nome indica de onde provêm as falsas noções que não permite o homem ter acesso ao conhecimento cientifico, vem do próprio homem, a saber, os erros da raça humana. Esses ídolos induzem os homens a tomarem todo conhecimento derivado dos sentidos como verdadeiro. Os sentidos enganan subjetivando o conhecimento, que para Bacon deve ser objetivo e obtido através do método experimental, ou seja, pela observação e experimentação. Eles são vícios inerentes à natureza do homem. As percepções erronias do ser humano induzem a interpretação do universo de modo mais simples do que ele é na verdade. Ou seja, uma interpretação onde o intelecto e os sentidos podem conduzir o homem a conceitos antecipados.

3.2. Ídolos da Caverna

Ou contrário dos ídolos da tribo, os ídolos da caverbna diz respeito aos homens quanto indivíduos. Trata da natureza do indivíduo, e não da espécie humana. O título é devido a uma alusão à “Alegoria da Caverna”, mito contado por Platão em sua República. Segundo Bacon todo homem “tem uma caverna ou uma cova que e corresponde a luz da natureza” Isso é, da mesma maneira encontrada em Platão, os indivíduos, possui a sua verdade particular, tida como única. A constituição da alma e do corpo, a educação, o hábito ou os eventos fortuitos são tomados por Bacon como originários dos ídolos da caverna.

3.3. Ídolos do Foro

Também conhecido como ídolos do mercado ou da feira. Assim chamados “devido o comércio e consorcio entre os homens” . Compreendem os erros implicados na ambigüidade das palavras e na comunicação entre os homens. É um problema básico de linguagem, pois “os homens se associam graças ao discurso” . Uma mesma palavra (ele toma como exemplo a palavra úmido) tem sentidos diferentes para os interlocutores e isso pode levar a uma aparente concordância entre as pessoas. Pode-se dizer que aqui encontra-se uma ponta do que viria a ser a filosofia da linguagem no século XX. Para Bacon esses ídolos são os mais perturbadores, por alojarem-se no intelecto graças ao pacto nos discursos. São dois os ídolos que se impõe ao intelecto, os nomes de coisas que não existem, e os nomes de coisas que existem, mas são mal determinados e abstraídos das coisas inadequadamente.

3.4. Ídolos do Teatro

Os últimos ídolos identificados por Bacon têm suas causas nos sistemas filosóficos. Eles “imigram” para o espírito humano através das diversas correntes filosóficas, não sendo inatos foram recebidos por meio de fábulas e das ciências demonstrativas. Bacon afirma que eles são numerosos e que “As narrações feitas para a cena são mais ordenadas e elegantes e aprazem mais que as verdadeiras narrações tomadas da história” . Ele aponta três tipos de fontes de onde provem os erros amparados pelas “falsas filosofias”, são eles: a sofistica, a empírica e a supersticiosa.

4. Conclusão

O projeto baconiano em propor um novo método para modernidade legou a sua época e as épocas posteriores uma acusação direta à crise intelectual vigente, atribuindo-lhe o título de “o primeiro dos modernos e ultimo dos antigos”. Em sua obra O Novum Organum, encontra-se idéias e princípios que serviram como pavimentação para uma ciência pautada na experiência rejeitando tanto o dogmatismo religioso como a metafísica filosófica. Para Bacon o novo homem não devia mais “idolatrar” esses ídolos recalcadores da natureza, mas sim, desprender esforços para implantar a Instauratio magna (Grande restauração). A grande contribuição de Francis Bacon assenta-se na apresentação de um novo método que é liberto de posições extremas (apenas metafísicas) e longe da simples sensibilidade. Seu único objetivo é estabelecer o imperium hominis (império do homem).